‘Um gorila’, de Anthony Browne: um livro para primatas

Rita M. da Costa Aguiar
5 min readJun 28, 2021

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Um gorila, que acaba de ser lançado no Brasil pela Pequena Zahar, seria mais um livro de contar e apresentar os números se o autor não fosse o renomado Anthony Browne — o primeiro ilustrador britânico a receber o Prêmio Hans Christian Andersen, o mais alto reconhecimento internacional para criadores de livros infantojuvenis.

Mas para além disso, o que torna Um Gorila tão especial?

UM GORILA. Para aprender a contar. Anthony Browne
Tradução: Ana Tavares
Um gorila. Para aprender a contar.

Anthony Browne associa cada número, de 1 a 10, a um primata: de gorilas a gibões, babuínos a mandris, macacos colobus a macacos-aranha… O autor é declaradamente um apaixonado por primatas e os representa de forma muito precisa na expressão do olhar, na textura da pele, nos detalhes dos pelos e nas combinações de cores. Dá vontade de passar a mão nos pelos para ver se são macios e de entender o que eles estão querendo dizer com a maneira de olhar, se é que eles estão querendo nos dizer alguma coisa.

Na minha primeira leitura, além das características das ilustrações e dos primatas eu pensei: Ué? Cadê o Anthony Browne aqui? Não foi de primeira, mas o encontrei. E o que significa encontrar um autor no seu próprio livro?

Se você já conhece as suas obras, vai lembrar que em Vozes no parque, Gorila, O túnel, Tudo muda… ele trabalha a narrativa visual como ninguém, pois cada ilustração carrega um sem fim de enigmas.

À procura de Anthony Browne

Uma das características do livro ilustrado é que a narrativa visual, a textual, o suporte (o formato, o objeto) e o design constroem juntos um único sistema. O equilíbrio desses elementos pode variar. Em geral essas obras têm textos curtos, que podem ser predominantes ou subordinados às imagens. Outras vezes o projeto gráfico é quem domina essa dinâmica. O importante é entender que existe sempre uma equação entre esses elementos, que pode acontecer de formas variadas, mas sempre em páginas duplas, e é aqui que a química acontece.

Nas obras de Anthony Browne, todas as suas imagens são cheias de camadas de intepretações, que ampliam as possibilidades do leitor a imaginar, inferir, investigar e questionar.

Um livro ilustrado sempre abre para questionamentos e por isso a releitura se faz tão presente, até mesmo durante o ato de ler.

Muitas vezes nos pegamos descobrindo algo numa página e voltando para a anterior. É nessa descoberta de algo que não havíamos visto que ampliamos nosso repertório e passamos a perceber que não basta olhar, é preciso exercitar e aperfeiçoar essa habilidade.

Os expressivos gibões ilustrados por Anthony Browne

Talvez eu tenha sido de fato inábil na minha primeira leitura por não ter encontrado Browne de primeira em Um gorila, provavelmente a sua obra mais sutil. Mas eu tinha só me esquecido de uma outra característica que compõe o livro ilustrado: o virar de página, que é quando a gente pega fôlego e o silêncio acontece e, no meu caso aqui, foi quando a ficha caiu.

Em cada primata, uma presença

O livro começa na primeira dupla com 1 gorila (viramos a página), 2 orangotangos (viramos a página), 3 chimpanzés… e assim por diante até o 10. A cada dupla temos uma família com primatas, semelhantes entre si, porém nunca iguais. Se passarmos desatentos por elas, todos parecerão iguais, mas se nos apropriarmos do fôlego da virada de página e olharmos um a um, perceberemos que cada um deles tem a sua própria presença.

8 macacos-japoneses e seus pelos cheios de textura

Minha dupla preferida é a dos macacos-japoneses, pela delicadeza nas diferenças de cores entre os pelos de um em relação ao outro, nos olhares… Será que são todos da mesma família? Machos ou fêmeas? Irmãos, primos ou amigos? Tanta coisa passa na nossa cabeça. Que barulhos será que eles fazem? Como será que eles se comunicam? Vivem juntos? O que eles gostam de comer? Podemos ficar horas em cada uma das duplas, com milhões de pensamentos, e quanto mais olhamos as imagens, mais perguntas fazemos. O virar de página em Um gorila também nos transporta para outra parte do mundo. Uma hora estamos na África, outra hora na China, na Indonésia, mas o que importa mesmo é que todos são semelhantes entre si e ao mesmo tempo únicos, não importando onde estejam.

Um gorila é indicado para crianças a partir de três anos, portanto é uma leitura inicialmente compartilhada. Seu formato é generoso, quadrado, dá para mostrar para um grupo, dá para ler bem de perto com uma criança no colo ou até mesmo por uma criança sozinha deitada no chão.

Em geral, as crianças dessa idade estão sendo ou já estão inseridas na escola, lidando com outras crianças semelhantes a elas e ao mesmo tempo diferentes. Elas iniciam o processo de criar sua própria identidade, aceitar a diversidade e viver em sociedade, para além do núcleo familiar. São capazes de entender argumentações e começam a rascunhar as suas.

Os mandris e seus olhares tímidos e profundos

Singularidade, diferença e semelhança

Um gorila trabalha com muita delicadeza o sentido de pertencimento, diferença e semelhança, ajudando o leitor a construir, através da narrativa visual, sua identidade, seu modo de existir, pois cada imagem abre uma janela para infinitas possibilidades a partir de um mesmo ponto: o da singularidade. Eu só entendi isso ao me questionar para que leitor é essa obra, uma pergunta que o livro ilustrado nos instiga a fazer: que leitor é esse? Que leitor queremos formar? Que leitor somos nós?

Embora ele seja um excelente projeto para iniciar a habilidade visual e compreender que essa forma de narrativa também é importante para a compreensão e construção de sentido na formação leitora, pela sutileza do percurso ele também é um livro para todas as idades.

Iniciar a formação leitora de uma criança com Um gorila só fará a leitura dos próximos títulos do autor ainda mais saborosa, dando repertório para acessar as diferentes pontes de sentido em outros tantos livros que virão por aí e que irão ampliar a capacidade leitora para torná-la questionadora, ativa e, muitas vezes, maravilhosamente sem respostas para tamanha reflexão.

Ao final, o livro ainda traz uma surpresa, mas essa eu não quero te contar, e nem daria, porque Um gorila habita mesmo o campo do sutil. Boa leitura.

Texto publicado originalmente no blog da Letrinhas: ‘Um gorila’, de Anthony Browne: um livro para primatas — Blog da Letrinhas

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Rita M. da Costa Aguiar
Rita M. da Costa Aguiar

Written by Rita M. da Costa Aguiar

Desenho gráfico editorial, especializado em livro para a infância.

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